Monday, March 26, 2007

espanhola

o gordo não sabia castelhano. mas sonhava, desde miúdo, que lhe fizessem uma espanhola.

coração

correu, correu, correu com a bola nos pés, por entre defesas e adversários. saltou mais um pé raivoso mas não foi suficiente para evitar a perseguição. antes de lhe partirem a perna em dois numa entrada por trás, apenas gritou: «amor!». podiam-lhe partir ambas as pernas, mas aquele coração não quebrava.

finalmente

o rapaz ama, finalmente ama. não fizesse ele um esforço de memória e juraria que nunca antes tinha conhecido uma mulher. antes, eram apenas pessoas do sexo oposto.

sacrifício III

pum. pum. o teu cão está morto. era doente, deficiente, o pobre do animal. aliviaste-lhe a dor de ser diferente. mas agora, inesperadamente, a dor dele foi para ti. e nessa dor não há bala que possas meter para continuar a tua vida.

sacrifício II

a mulher matou o filho dizendo que assim era melhor para a humanidade. no final, agradeceu a quem a iluminou para os prazeres do infanticídio.

sacrifício I

mata. mata. mata. parte a montra da loja. degola o cão vadio. chama nomes às putas e entretém-te a apedrejá-las. amanhã será um dia melhor e tu estarás curado. os sacrificados para a cura? não há com que preocupar, ninguém dará pela falta deles.

autocarro

no autocarro, sentia que todas as pessoas tinham sido para ali destacadas apenas para o apertar, para o esmagar. tinha sempre a sensação de que, antes do final da viagem, seria destruído. mesmo que tivesse o bilhete certo.

o melhor fato

mesmo com o melhor fato vestido, constatava a verdade: não interessava o tempo que demorava a arranjar-se ao espelho, porque no amor, no final de tudo, seria sempre um trongo.

Sunday, March 18, 2007

Estado crítico #8

PERSEGUE OS TEUS FANTASMAS SOMENTE DENTRO DE TI



John Constable, Rainstorm

tentação IV

mata. mata. mata. destrói. era tudo o que pensava quando ficava sozinho.

tentação III

queria matar alguém. mas mesmo num mundo sem lei, até matar um desconhecido lhe soava a fratricídio. não é preciso deus para perceber que somos todos filhos de um mesmo pai longínquo.

tentação II

o homem renegou deus e entregou-se às mãos do diabo. de forma resumida, pode-se dizer apenas que desistiu da lei.

tentação I

é o diabo que nos tenta ou o diabo somos todos nós?

interdição

o rapaz mal podia esperar que lhe tocassem no pénis. como um ponto no meio das costas onde as mãos não chegam, o rapaz sentia que era fisicamente impossível satisfazer-se a si mesmo.

velocidade

corri com alma e coração na direcção do vazio. o cimo do prédio estava ventoso nesse dia, e a corrida dava a sensação de velocidade. na corrida para a beira desprotegida do terraço, passou-me pela cabeça rapidamente a sensação de omnipotência. posso voar, pensei eu. não sabia voar. não voei. mas num pico de velocidade nunca se pensa na morte.