Friday, October 03, 2008

Medo



O medo. É difícil encontrá-lo. Muitas das vezes o medo não existe enquanto tal. A maior parte do tempo é projectado para todo o lado como fogo de artifício. E está no incómodo de viver com os outros de não ser sozinho neste mundo quando afinal sempre me senti sozinho de ver alguém fazer o que queríamos fazer o que queremos e vamos fazer dando sentido à existência dando existência às ilusões e ilusão à fome de realidade. Vê o ódio. O ódio pelo outro que nos odeia que nos inveja que nos quer matar e tirar o lugar e tirar a vida e tirar o chapéu que é tão elegante e singular e fica bem na minha cabeça e nunca na cabeça de qualquer outro sujeito que não seja tão elegante e singular como eu que dou sentido ao chapéu que me dá sentido à cabeça que não se apercebe que nunca existiu chapéu algum. O outro come o nosso comer e pisa o nosso solo e mói o nosso juízo e corta a minha mão para se alimentar dela e se alimentar de mim enquanto se ri com o meu chapéu posto fingindo que é tão elegante e singular quanto eu. O medo é o meu logo é o dele bem assim como o ódio que é mais meu do que dele e se alimenta da existência alheia para voltar para mim com carimbo posto. O espelho não ri e não respira mas odeia-me tanto. É melhor dar-lhe um nome. Olha já sei vou chamar-lhe Outro.

Teatro

E, de repente, estou sozinho em casa com o cão. O silêncio parece fruto de uma multidão furiosa de amantes da calma, de tão calada que parece a casa. De noite a madeira ressoa debaixo dos pés e estala no lado oposto do lar. Na verdade, é até incómodo, de tão habituado que fiquei a estar acompanhado praticamente todo o tempo. A leitura torna-se sagrada e dedicada mas, ao mesmo tempo, monótona. Decido adiar. Ligo o computador e espreito uma página pornográfica. Já lá vai algum tempo. Aprecio o trabalho destas mulheres. Torço e rodo a cabeça para acompanhar os movimentos acrobáticos. Ena, uma perna feminina por cima do homem, desafiando as leis musculares que regem as limitações atléticas e ditam a vulgaridade do corpo humano. Um salto alto apontado para o tecto, a fazer de minarete, mas o homem não me parece muçulmano, nem vai com intuito de rezar. Acho piada ao salto alto, mas nunca me prendi por pormenores. Muito menino começa por achar graça aos adereços das mulheres durante o sexo e acaba a vestir-se de mulher. Aliás, considero-me um ateu. Esta não seria uma excepção. Não ligo aos minaretes. Sou, infelizmente, um sujeito demasiado medíocre para acreditar em mais do que na superstição. Há quem me chame concreto e chama bem. Gosto da imundície fingida que se passa na pornografia normal. Gosto das performances teatrais da maior parte delas. Uooopá... ali vai ela. Grita bem e merece um prémio. Aplaudo sozinho em frente ao computador e quase que me apaixono pela ruiva, que acabou de rodar sobre si mesma e ficar por cima, no comando das operações. Nunca deixou de estar espetada na estaca, em todo este movimento. O meu cão ladra da entrada perante todo o espectáculo e interpeto-o como um sinal divino. «Os ateus visionadores de porno arderão no inferno», penso. À noite sozinho em casa este não deixa de ser um sinal arrepiante. É melhor não desafiar estas leis. Mando um beijo à ruiva das mamas grandes e desligo o computador. Soube-me bem. Sempre gostei de teatro. E ainda dizem que não se aprecia em Portugal.

Thursday, October 02, 2008

Dia de pagamento

Sabes onde vives. Não queres dizer o nome e chamas-lhe casa. Mas não é esse o epitáfio habitual destes sítios. Vives numa pocilga. P-O-C-I-L-G-A. Numa espelunca. Num chiqueiro. Esmifras os últimos tostões que tens na carteira e tentas comprar assim a boa vontade de outrem, para que possas chamar a esta merda um quarto. Nunca consegues, e assim te tornaste num vagabundo, num marginal, vida à qual chamas, benevolentemente, a «descoberta do mundo».

Toc toc. Batem à porta. Sabes quem é. Não pagaste a renda, uma vez mais, e a porteira vem reclamar o que é seu de direito. Por mais uns minutos de sexo imundo, em troca é um jeitinho que ela te faz, e pode ser que possas usar a palavra «lar» mais umas semanas. Que mentira. Mas gostas. Ser usado faz de ti um objecto. E os objectos, ao menos, existem.

Matemática

Dois mais um. Igual a três. Sabias fazer esta conta com uma perna às costas há umas décadas atrás, e orgulhavas-te de ser o primeiro a levantar o braço. Mundo menos eu. Já não te atreves a responder a esta operação. Subtrair-te ao mundo. O facto é que é assim que as pessoas se têm comportado nos últimos tempos. O que aos outros parecerá a ordem natural das coisas, a ti parece-te matemático e trágico.

A grande depressão



I

Álvaro acendeu mais um cigarro e sentou-se na poltrona de tecido roído, a olhar para o retrato do avô na parede da sala. «A depressão é como o silêncio», pensou, «viciante, viciosa e profunda como um imenso oceano de possibilidades». E esboçou um sorriso amarelo depois desta reflexão. O seu avô, ilustre membro de uma geração de gente simples mas trabalhadora, fora também o representante contemporâneo da angústia de viver da sua família.

Manuel Fernandes Martins havia chegado a Évora no princípio do século para tirar o seu sustento da terra, virando as tendências de pobreza urbana da linhagem Martins para uma notável ambição terra-tenente nos campos solarengos do Alentejo. Não se tornou o latifundiário que sempre desejou, mas iniciou uma actividade que viraria a família para dentro de si mesma, dedicando toda a sua energia a trabalhar a terra para matar a fome e construir um futuro.

Manuel, no entanto, acabou muito cedo sozinho com o único filho sobrevivente aos inúmeros partos falhados de Rosa, a enigmática avó de Álvaro que um dia disse que «não mais traria a este mundo gente sem vontade de viver». A mulher de Manuel Fernandes Martins, conhecendo bem a família do homem que escolhera para lhe dar um tecto, jurou que não teria mais de um filho de Manuel. E assim, depois do nascimento de Alfredo, o organismo de Rosa fechou-se para não mais obedecer aos planos de multiplicação do marido, que entrava em desespero com esta condição de a mulher não conseguir dar à luz o fruto das suas sementes. Rosa, aliás, costumava dizer às irmãs que «não se pode dar à luz onde nunca houve luz». Nunca ninguém soube muito bem o que ela queria dizer com isto, nem se o dizia de forma sábia ou simplesmente embalada no sarcasmo de quem já desistira de ser feliz. O que é sabido é que, poucos anos volvidos sobre o nascimento de Alfredo, Rosa morreu depois de uma febre intensa, que lhe varrera o juízo algumas noites antes de lhe varrer definitivamente a vida da cama ensopada em suor, onde jazeu o cadáver até Manuel se decidir a deixar alguém levá-lo para se procederam às cerimónias apropriadas. Alfredo tinha cinco anos. Manuel nunca mais foi o mesmo, passou a dizer coisas como «Encontrei o sentido das coisas», ou «a Rosa mostrou-me o caminho». Aos quinze anos, Alfredo viria a encontrar Manuel no celeiro, agarrado à espingarda de caça cujo cano ensanguentado lhe ficou na memória como estandarte do espectáculo de morte que encontrou, espectáculo no qual o pai era o protagonista.


II

Há muito que Álvaro também se deixara cair numa depressão sem retorno, fazendo dos seus dias longas noites sem uma verdadeira luz e das suas noites intermináveis dias sem conseguir pregar olho. Estava agora sentado na antiga poltrona dos patriarcas da linhagem Martins, de camisola interior e calças de pijama, descalço no tapete acolhedor da sala, a olhar pela janela o celeiro no qual o avô um dia expulsou os pensamentos negros da sua cabeça por intermédio de uma espingarda de canos frios.
– Substituiu as nuvens negras do seu íntimo por nuvens de chumbo purificador… – disse Álvaro, seguido de uma pausa – não sem antes rezar uns pais-nossos, como lhe ensinaram em pequeno, com certeza.

Com isto, olhou novamente o retrato do avô na parede e puxou mais uma fumaça no cigarro, deixando que a cinza lhe caísse em cima das calças de pijama. Começou a reparar que a cara daquele homem, tão solene no retrato, havia deixado de existir por sua vontade expressa, já que a havia enviado para todos os cantos do celeiro. «Realmente, o homem vinha de uma longa linha genealógica de idiotas suicidas», pensou, traduzindo aquilo que a sua mãe lhe contava e o pai, Alfredo, confirmava. Uns haviam ficado em La Lys, outros embarcado em lutas autodestrutivas contra o poder e contra a guarda – um tio de Manuel Fernandes Martins não resistiu a um golpe de cassetete que lhe deram no cocuruto –, outros dois deram-se ao trabalho de viajar até ao cabo Espichel para se atirarem às rochas de forma idêntica, e Álvaro perdia assim a conta aos casos de fracasso da vontade, numa viagem nostálgica à história da sua família.


III

Álvaro não conseguia perceber o que tinha, na sua própria vida, acontecido para chegar também ele a este ponto. O divórcio fora a gota de água num percurso de abrandamento da vontade de viver, que já o acompanhava desde a adolescência, na qual se deleitava com a leitura de Goethe sem nunca lhe parecer credível, no entanto, que o amor pudesse ser uma boa motivação para a morte auto-aplicada. O cargo de professor de Literatura também foi pelo cano abaixo quando decidiu que as pessoas a quem dava as aulas na universidade não eram razão suficiente para sair de casa. Desses velhos tempos de tutor restavam-lhe uma gravata vermelha, que hereticamente passeava em frente à igreja todos os dias quando ia para as aulas, e uma carta em papel amarelado e carimbada a cera que, ao agradecer todos os anos que havia dedicado à instituição, lhe pedia delicada mas expressamente que se pusesse a andar dali para sempre. «Não estivesse o meu nome neste papel, já teria limpado o cu com ele, quando me vou aliviar à mata», pensava enquanto punha a carta de volta no envelope, nas vezes em que, sem razão alguma, se punha a ler a despedida.

A sua vida não era, definitivamente, um mar de rosas, e foi assim que Álvaro se decidiu, levantando-se e olhando os olhos do avô no retrato: «vou pôr termo à minha vida».


IV

O velho Alfredo Martins voltava, ao fim da tarde, do trabalho no campo quando Álvaro o viu chegar, pela janela do seu quarto no primeiro andar, virado para oeste, por sobre a entrada. Como sempre, o velho chegava, pousava a cesta já vazia do almoço, mas que ainda trazia uma camisola suada – que invariavelmente despia por volta do meio-dia, mas a tradição obrigava, sem razão aparente, a levar sempre –, alguma fruta que apanhava aqui e ali nos terrenos e uma bolsa de tabaco para o cachimbo, e sentava-se nos degraus do alpendre a fumar.

Álvaro deixou cair o braço que segurava a arma de calibre .22 e, olhando o pai a fumar de cabeça entre as mãos, resolveu adiar os seus planos. Aliás, era a desculpa de que precisava para justificar esta delonga, que mais se devia à falta de coragem em premir o gatilho do que à preocupação com os vivos. Ainda assim, achou que o melhor seria pôr a arma de volta no armário, atrás da caixa dos ténis de corrida, o que fez prontamente, saiu do quarto e desceu as escadas.
Encontrou o pai já a chorar, não propriamente uma face contraída pela dor, mas uma cara enrugada pelo sol e pela idade em cujos olhos se misturavam olheiras, suor e lágrimas, sem derrubar a força do velho guerreiro que Alfredo era. Sentou-se também nos degraus, ao lado do pai, e acendeu um cigarro.

– Não vejas o teu pai chorar, homem.

– É o meu pai. Tenho de o ver, chore ou faça seja o que for que lhe dê na cabeça.

– Está bem, filho. Mas não te preocupes.

– Não, ora essa…

Álvaro fingiu distrair-se com algo mais, olhando o horizonte e seguindo um corvo com os olhos no seu voo livre. Ao mesmo tempo, o velho aproveitava a aparente distracção do filho para contemplá-lo. Lembrava-se de quando este dera os primeiros passos, quando aprendera a disparar com ele, quando decidira largar Direito e dedicar-se definitivamente aos livros, quando achara que iria um dia ser escritor. Lembrava-se de quando ele dizia ser um homem feliz. Não acreditava que alguma vez qualquer um deles pudesse pensar em coisa tão abstracta e distante como a «felicidade», se não a visse estampada num filho, num irmão, num pai ou nas mulheres das suas vidas, que entravam e saíam destas como raios de luz na escuridão das mais fundas grutas. Queria o melhor para o filho.


– Álvaro, porque não voltas a ensinar?

– Ora, pai… Sabe muito bem…

– Não, não sei. Nunca houve uma razão para isso. Não quero esta vida p’ra ti. Puxar e empurrar carrinhos de mão. Contratar viajantes e ilegais aqui e ali quando as pernas ameaçam falhar ou o calor nos atira para uma cama com o coração a rebentar. Sentir os braços a dar de si, numa dormência tal que larga a enxada em cima dos pés. Trabalho, trabalho e cansaço. A história da minha vida são essas três palavras: trabalho, trabalho e cansaço.

– Eu sei. Puta de vida…

– É a que eu tenho. Mas tu tens outra. Tens um dom.

– Não tenho, pai. Tenho um curso. É muito diferente. Nunca fui realmente professor. Falava sozinho, para as paredes, na esperança de que alguém me ouvisse. Ou sem me preocupar sequer se alguém ouvia o que eu dizia, não sei bem. O que sei é que naveguei sem leme em todos estes anos. E agora não me ficou nada. Nem saudades de uma rotina, que é o mínimo que se pode ter.

– Gostava que voltasses a ensinar…

– Desculpa, pai. Não vai acontecer… Não há uma boa razão para isso acontecer.

O velho lembrou-se da vida que o seu pai tinha, da vida que quis para si, e de como todos aqueles hectares lhe tinham ido parar às mãos aos quinze anos. Nos seus solitários quinze anos. Fez-se homem no momento em que pegou no balde e na esfregona e foi lavar os miolos do pai das paredes do celeiro. «Ninguém na minha família voltará a ter este tipo de trabalho», pensou.

– Filho, ensina o pai a escrever.


V

O pedido do pai não o apanhara desprevenido. Manuel Fernandes Martins nunca se preocupara em ensinar o filho a escrever. Abalado pela morte de Rosa, o soturno Manuel rapidamente se tornara um homem obcecado pelo trabalho agrícola, ensinando com ternura latente mas pouco cuidada o filho a sobreviver nos campos, na vila e na vida, mas descurando a sua educação. Por esta razão, Alfredo nunca tivera uma caneta na mão que não fosse para fazer cruzinhas em boletins de votos ou para alinhar números, que sabia usar e manipular para os negócios «como Paganini sabia tocar num violino», segundo a mulher, que não se contentara com este virtuosismo matemático e o deixara após dez anos de casamento.

Não sabendo escrever, Alfredo pedira pois ao filho que o ensinasse. Tanto a ler como a escrever, aliás, que nunca conseguira ler uma página inteira que não lhe fosse lida por outra pessoa. O último desejo de um velho, que por tanto tinha passado, não podia ser desrespeitado. E como negá-lo a um homem destes, que, já passados os oitenta anos, se sentava aqui, com o vigor dos trinta, a fumar cachimbo depois de um longo dia de trabalho e a pedir que lhe ensinassem uma coisa nova?

«Esta será a minha última missão em vida», pensou Álvaro. Levantou-se, sorriu afectuosamente e, após atirar a beata para longe com um golpe de dedos, entrou em casa. Passados cinco minutos, apareceu com uma pilha de livros, três lápis e alguns cadernos, que pousou na cadeira de baloiço.

– Vamos começar?


VI

Alfredo aprendia rápido. Lia, a meias, com o filho poemas de António Nobre. Depois passaram, inevitavelmente, por Antero de Quental, cuja história Álvaro explicava ao pai, e o velho ali ficava, de vez em quando, distraidamente, a imaginar um homem morto num banco de jardim. Espreitaram Teófilo Braga, mas Álvaro, após contar ao pai como aquele, invejoso sem saída, morrera debaixo de uma vingativa estante de livros, fechou o livro com um estrondo: «Este gajo não!». Leram poesia, teatro, literatura portuguesa e estrangeira. Alfredo ficara especialmente interessado na Madame Bovary. «E aquela safada da Bovary, hein? Aquilo é que era…», deixava o velho escapar de vez em quando, esquecendo-se por completo das lições do filho e não vendo mais do que uns lábios quentes que, da sua imaginação, desciam lentamente pelo seu pescoço e pelo seu peito suado, continuando até que… «Pai!», gritava o professor, «estás aqui?».

As lições correram muito bem para ambos. Alfredo começava agora a ter a autonomia suficiente para escrever frases inteiras sem a autoridade preceptora do filho, que quase deixava cair uma lágrima quando via o pai pôr a língua de fora, retorcendo-a de um canto para o outro da boca enquanto desenhava as letras que queria. Alfredo, ao fim de um mês, já escrevia.


VII

Álvaro esperava o pai ao fim do dia sentado nos degraus da entrada, com a pilha de livros ao lado. Estava ansioso por mais uma sessão apaixonante de descoberta do gosto do pai pelos livros e pelo prazer de escrever e, não menos, de redescoberta da sua própria gratificação em ensinar algo a alguém. Viu o pai aparecer no horizonte e vir devagarinho, carregando a habitual cesta com fruta e roupa suja, uma mistura que não parecia estragar o apetite de nenhum dos dois pelas maçãs vermelhas que devoravam sempre pela altura da ceia. Álvaro sorria quando o velho chegou perto dele. Mas Alfredo não parou. Deu uma palmadinha no ombro do filho e disse-lhe: «Obrigado, Alvarinho. Já chega. O pai já sabe tudo o que pode saber», e entrou directamente em casa sem o olhar.

Não esperava isto, Álvaro. Levantou-se, olhou a porta de casa expressar as suas últimas vibrações de vida antes de se fechar por completo, como num túmulo encerrado a madeira, vidro e rede de mosquitos. Pousou no topo da pilha de livros o lápis que tinha na mão e foi à cidade pela primeira vez em algum tempo. Ia comprar uma gravata como deve ser. Vermelha não queria. Matar-se de gravata vermelha soava-lhe a ventríloquo fracassado. Quando imaginava um ventríloquo, imaginava-o de laço ou gravata de cor vermelha, e quando o imaginava morto, imaginava-o estranhamente com menos vida do que a marioneta inanimada caída a seu lado – nas órbitas de um morto há menos vida do que nos olhos eternamente vazios de um boneco. Queria ir, então, bem vestido para o seu suicídio, e não tinha gravatas que se aproveitassem. «Esta é uma ocasião formal, para se ir bem vestido como num casamento. Aliás, casar é banal, enquanto morrer, bem, só se morre uma vez na vida». E foi de jipe à cidade.


VIII

No regresso, ao estacionar o carro em frente à entrada, Álvaro reparou nos corvos que sobrevoavam a casa. Descreviam círculos numa coreografia de arrepiar a pele, provavelmente embebidos de uma vertigem de morte que ele próprio partilhava. Qualquer coisa o levou mesmo a pensar que os pássaros sabiam de todos os seus planos. «Raios partam o reino animal», disse Álvaro, ao fechar a porta do jipe com um estrondo.

Dirigiu-se para a entrada a pensar em como haveria de fazer tudo o que tinha pensado, todo aquele esquema que tinha delineado. Não queria que o pai estivesse perto quando acontecesse. Lembrou-se então de que o velho deveria estar em casa. Abriu a porta e, no hall de entrada, gritou: «Pai!». Não ouvia resposta. Voltou a gritar por Alfredo. Ninguém. Andou então um pouco pela casa. Foi até à cozinha e lá estavam as maçãs vermelhas e frescas, à espera de serem atacadas. Pareciam, no entanto, neste dia, a Álvaro, objectos secos e sem graça, cujo rubor só o fazia pensar no Inferno. Atravessou de novo o hall gritando agora pelo nome do velho: «Alfredo! Aparece, sou eu». Na sala, nada nem ninguém. Tudo estava como quando ele saiu. Decidiu subir aos quartos. Receava o pior.

Alfredo não estava no seu quarto. A cama parecia feita de novo, impecável como sempre. Estava tudo arrumado. Na casa de banho ainda menos havia sido mexido. Foi então ao seu próprio quarto – estaria lá o pai? Olhou novamente os olhos do avô, que o observava a partir da sua janela de vidro na parede, reduzido a uma existência que apenas saía da moldura na memória dos outros. Então reparou, em cima da sua secretária, na pilha de livros, cadernos e lápis de que se havia esquecido nos degraus da entrada. Em cima deles, estava um bilhete. Pegou no longo papel, sentou-se na cama e começou a ler:

Filho. Obrigado pelas lições. O pai agora já sabe fazer as letras todas. Sei ler escrever e brincar com as palavras como podes ver. Se não fosse por ti nunca teria aprendido nada disto e não te podia escrever esta carta. Quero-te dizer antes de mais que há uma tábua meio solta lá em baixo no primeiro andar mesmo debaixo do sofá e o pai guardou lá sempre e guarda ainda tudo o que ganhou mais o que o avo nos tinha deixado. Ainda bem que alguém me ensinou a poupar. Ainda bem que te ensinei também a ti a poupar pois agora és o homem da casa és o homem mais novo e o homem mais velho do tronco principal da família Martins. Debaixo da tábua estão mais coisa menos coisa cem mil contos mais alguns trocos em moeda antiga. Tu que és novo saberás o que les fazer. Toma conta da casa e dos terrenos da gente e dá bom gasto ao dinheiro. Como podes ver por esta carta és um xelente professor (se houver alguma coisa mal escrita corrije ao pai fazes isso filho). Vai para a escola outra vez. Por mim. Adeus Álvaro. Gosto muito de ti e a mãe também que eu sei.
PS – estou na cave. Não te assustes. Está tudo muito limpinho de certeza. Chama alguém para te ajudar.


Álvaro correu quarto fora e escadas abaixo e, num ápice, estava em frente à porta da cave. Parou por um pouco, pensando se devia abrir. Sabia o que ia encontrar. Então decidiu-se por rodar, muito lentamente, a maçaneta da porta e empurrá-la muito devagar para trás. No escuro conseguiu vislumbrar, por contraste com o ténue feixe de luz que vinha da janela da cave, as pernas suspensas do pai agitando-se sem vida de um lado para o outro como o pêndulo de um relógio. Alfredo havia-se enforcado, mas não sem antes realizar o seu duplo desejo de aprender a ler e escrever, e de devolver o filho ao mundo das letras. Só assim, sem coragem para encarar o filho e revelar os seus planos, se pôde despedir dele. Só assim foi possível revelar ao filho a localização da herança de família sem levantar suspeitas. E teve ainda a preocupação de se mudar para a outra vida sem espalhafato, sem sujar as paredes da cave, ao contrário do que havia feito Manuel Fernandes Martins.

O pobre Álvaro apenas se deixou cair no chão de joelhos. E chorou.


IX

Bateram as três da tarde no relógio da vila e os rapazes correram, de mochila às costas, para as aulas. Um ou outro apagavam rapidamente os cigarros que fumavam às escondidas no pátio da escola, outros punham a bola de futebol debaixo do braço e lá iam eles, na direcção da sala de aula. Sentavam-se, arrumavam-se, estacionavam nas carteiras e atiravam papéis uns aos outros no reboliço terrível da puberdade. Alguns deles tentavam acariciar as pernas das colegas do lado. Outros olhavam melancólicos pela janela. De súbito, um deles entra a correr na sala de aula com o aviso: «Aí vem ele!». E tudo se sentou atinada e ordeiramente. E esperaram.

Alguns segundos depois entrava o professor Álvaro Martins de livros debaixo do braço, barba composta e aparada, cabelo penteado, encimando uma cara rejuvenescida que anunciava a gravata vermelha que o homem usava numa camisa branca de fato, sem casaco. Pousou os livros, olhou o relógio, reparou no sol que entrava pela sala de aulas adentro. Fitou os alunos por um momento. Esboçando um sorriso, perguntou pelas leituras do fim-de-semana:

– E aquela safada da Bovary, hein?



* Imagem: Norman Rockwell, Breaking Home Ties, 1954