Sunday, December 24, 2006

grandes esperanças

certo homem, sentado a olhar para o vazio, dizia contemplar a vida.

Saturday, December 02, 2006

sexto

encontrei-te
e a ebulição confusa dos sentidos
foi encontrando um ponto de apoio
por onde se guiar

quinto

dorme
não te preocupes
desactivei a memória no início da rua
e faço hoje vigília à tua cabeceira
com cem quilómetros de braço

quarto

pediste-me que te pintasse a cara
e carpisse o amor ao ouvido
mas não me conseguia curvar tanto
eu tinha então um metro e noventa
e ainda não tinha encolhido o suficiente

terceiro

quanto a ti não sei
mas a mim custa-me
és muito branco
vejo a minha cara reflectida
no teu peito
e encerro-me por pudor
disse ela

segundo

tira o calcário das grades
da cama
do quarto
esfrega com as duas mãos
até sangrar
e está feita a redenção
chegaste ao fim da linha
podes recomeçar

primeiro

corre
faz das tripas coração
atira-te à água, joão
atira-te ao chão

Tuesday, November 28, 2006

uma decisão

tenho andado meio decidido
basta pedires
e não hesitarei
serei o teu
amante
o teu amigo
o teu voyeur preferido
um primo
um vizinho
um residente na tua casa
no teu quarto
um apaixonado
um náufrago por ti reencontrado
serei um homem
ou um miúdo
serei uma personagem literária
mesmo que me tomem
por imaginação tua
serei o que sempre quiseste
serei aquilo que nunca pediste
ou mesmo o que ninguém precisa
darei um passo de dança
com uma duas ou três pernas
fingirei gostar do sol
e que a lua me apaixona
esconderei as presas e as garras
serei manso como um cordeiro
serei isto e aquilo
e não a semente do cansaço
serei uma decisão do momento
valeria a pena
tentar
ou posso ser apenas esta
massa familiar
que agora vês
a teus pés.

Estado crítico #3



Pintar a beleza tem a sua quota parte de solidão.

rumo

viajando de lisboa para coimbra
encontrava ele o caminho de volta para sul

Thursday, November 23, 2006

Estado crítico #2


Van Gogh também não sabia o que fazer com as grandes ausências.

Memória

A memória decidiu equilibrar um copo de veneno na ponta dos lábios. A partir de então, esperava-se um de dois fins: uma memória mais lúcida ou um homem envenenado.

Anormal

Naquele dia, sem sair de casa, adivinhou todos os passos dela. Até perceber que isso não era compatível com qualquer tipo de normalidade que ele conhecesse.

O silêncio

Gosto do silêncio. Mas será possível amar o silêncio sem amar um pouco a tristeza?

Thursday, November 16, 2006

Ilhas 7



Modigliani, galã na pintura, afinal apenas compensava na tela aquilo que não sabia dizer a uma mulher.

Ilhas 6

O hábito. Em alguns dias sem ela, comportava-se como um cão abandonado na autoestrada.

Ilhas 5

Ele era um medroso. Mas fechado naquela ilha sentia-se um animal selvagem, apenas feliz em cativeiro.

Wednesday, November 15, 2006

Relação

Matemática: «ciência que tem por objecto de estudo as relações entre os números, as formas, as grandezas e as operações».
Tudo se resume às relações.

Ilhas 4

Esperava os seus encontros. De sete dias, passou a contar seis dias mais um.

Ilhas 3

Ao conhecê-la, conheceu as centenas de pessoas que ficaram para trás.

Ilhas 2

Estava frente a ela. Mas se 2 + 2 realmente equivalem a 4, naquele dia a soma das suas qualidades masculinas parecia sempre um número imperfeito.

Ilhas

O carro estava acolhedor. «Para onde?», perguntou-lhe ela. «Aqui. Lá fora não há nada».

Podre

O chinês vulgar dizia sempre: «que vivas tempos interessantes». Mas afinal tinha carne podre.

Nostálgica

Segura os teus cabelos no ar e puxa-te a ti mesmo no sentido ascendente. Escolhe a dor na cabeça, antes que as chamas debaixo dos teus pés atinjam temperaturas insuportáveis. Porque a dor não consome a carne. É esta que consome a dor como um narcótico carregado de nostalgia.

Tuesday, November 14, 2006

Tardes bem passadas

Mesa para dois e um revólver a jacto.

Saturday, November 11, 2006

Chinês

Um sábio chinês ensinara-me: dá grandes saltos com pequenos passos. Não sei como.

Estado crítico #1



Van Gogh também tinha corvos no seu milheiral.

Puro amor

Um homem cortar a orelha e dá-la à prostituta.

A espera

Um desconhecido havia nascido para se sacrificar por algo maior. Esperava apenas que lho pedissem. Mas esse dia nunca chegou.

Choose life

A certo homem, colocaram-lhe o dilema. Ganhar juízo ou perdê-la a ela.

Da água

A chuva.
Sabias tu o que era chuva quando a viste cair pela primeira vez? Não te assustaste tu com ela, ao mesmo tempo que a sentias estranhamente correr pela cara? Naquele tempo era chuva, não era água. Pensavas.

O mar.
Não eras tu criança quando o viste pela primeira vez? Estendendo-se da tua vista à vista de outra pessoa noutro lugar do mundo. Um mar com limites conhecidos, no entanto convidando à descoberta. À redescoberta.

Um rio.
Não te apaixonaste tu pelo curso das águas quando as viste pela primeira vez? Juraste que seguirias esse rio, tomando-o como um rumo num tempo em que não conseguias encontrar um. Prometeste lançar-te à água antes mesmo do barco ser construído. Não interessava onde estava a sua nascente. Para ti, aquele rio nascia ali, aos teus pés.

O ribeiro.
Da tua infância. O ribeiro puro onde ias beber água sem medo dos venenos modernos. Não foi nele que passaste as tuas mãos pela primeira vez? Não foi nele que descobriste a sensação de tocar a água, onde mergulhaste pela primeira vez a face em águas que corriam sem pressa? Esse ribeiro existia, mesmo, apenas para conheceres a sensação da água.

A água.
Não te apaixonaste tu pela água? Porquê perder o medo de saltar para dentro dela? Salta, recupera a capacidade de nadar. Afinal, o rumo da água ainda não mudou.

Thursday, November 09, 2006

Correr

Se as coisas te estiverem a correr bem, deixa de correr.

Life

Atirar dois pedaços de carne crua para o meio da estrada.
Esperar que os cães sintam a fome.
Esperar o sinal verde ao início da avenida.
Aguardar.
Uma explicação da vida de um homem vem já de seguida.

Susto

Um homem, depois de duas voltas à vida, resolveu voltar ao ventre da mãe.

Duas memórias

Lembro-me de ti. Lembro-me do passado, da infância, das corridas no parque, das quedas, do choro fatalista, do crescimento, da falta de crescimento, da ilusão de crescimento, da escola, do medo da escola, do medo dos outros, do medo de tudo, do medo de crescer, do medo do amanhã, da adolescência, da inquietude, dos namoros, das escolhas, das descobertas, da juventude, das desilusões, do choro fatalista, das quedas, dos passeios lentos no parque, do tempo que passava muito devagar, do tempo que passou a correr cada vez mais depressa, do tempo apenas, do tempo que perdeu a noção de si próprio, de ontem, da manhã de hoje. Lembro-me de ti. Não me lembro de mais.

Rapidez

A morte poderia chegar neste momento que a mente não perceberia, de tão lenta.

Tuesday, October 31, 2006

Duas vias

Diz-se que «no meio está a virtude». Digam-me honestamente: poderá um carro andar no meio da estrada?

Objectivos

Ele queria ser Papa. Mas não gostava muito de santos.

Sem coleira

Um cão e uma cadela fodiam desalmadamente. Escândalo: sem coleira. Compreende-se. Afinal de contas, já tinham dia marcado para o abate.

Boa vontade

Não aparecia nada escrito. Por isso, começou a bater com a cabeça no teclado, à espera que um dos dois começasse a trabalhar.

Saturday, October 28, 2006

Parar

Certo homem, com medo da morte, foi-se adiando em vida.

Relógios

Cada dia, o teu ser rouba-me um pouco da alma, cada vez mais diluída nos teus refreados desejos.
Por cada vez que preenches o imaginário de mais um homem, há uma ínfima parte de mim que sufoca uma criança em pranto, como se mais ninguém tivesse direito a um desejo egoísta.
A cada manhã em que te deixas deslizar para dentro dos teus melhores sapatos, a caminho de um encontro vulgaríssimo, algures um homem deixa-se ficar na cama - decidindo se é hora de partir.
Por cada momento inconsciente teu, um ponteiro do relógio dá uma volta em sentido contrário.

Um salto

Ignorando os conselhos da polícia, saltei do terraço do prédio. Pensei que me chamavas lá de baixo. Não me chamavas. No fim de contas, nem eras sequer tu.

Intenções

Reparaste? Por ti, rebolei-me na lama. Revolvi terras inférteis para lá afundar a minha cara. Pus uma pena de pato na cabeça para me tornar mais visível. Disse-me rei do mundo e pus a toalha da mesa do restaurante às costas, como um manto real. Abdiquei logo de seguida para veres o quão modesto e generoso eu sou (podia ser que fosse isso te atraísse). Dei as minhas terras às pessoas que passavam, e afinal nem sabia que terras eram e onde ficavam. Parti um braço para não escrever mais, mas tu só olhavas para o braço oposto, em jeito de consolação. O conceito de sacrifício era pouco importante. Só por isso, rebolei-me um pouco mais na lama, para não secar a sujidade. «Não reparaste que já cheguei bêbedo?». «Não», respondeste tu. Esforcei-me: «Em cada homem humilhado há um potencial apaixonado». Nem nisso acreditaste. Foda-se.

Friday, October 27, 2006

Lembrar

A memória dura sempre mais na carne.

Death

Nor dread nor hope attend
A dying animal;
A man awaits his end
Dreading and hoping all;
Many times he died,
Many times rose again.
A great man in his pride
Confronting murderous men
Casts derision upon
Supersession of breath;
He knows death to the bone -
Man has created death.


W. B. Yeats

Génese


W. B. Yeats