Olhas-te ao espelho. Quem é este tipo? Já não o conheces. Não o queres conhecer, pelo menos. Dá por um nome parecido ao teu, mas é um desconhecido, dizes. Não podes ter sido tu a passar o ano deitado com uma prostituta. É obsceno, murmuras. Não, enganas-te, é triste e, simultaneamente, apetece-te rir. Fechas os olhos e sonhas acordado por um pouco: imaginas-te rodeado de putas com gravata. Olha, estás em São Bento. És deputado e tens sucesso. Acabaste de passar o ano com uma mulher linda, alta e loira, mesmo aquela conservadora que tu gostas. O teu nome próprio é Doutor e há quem te abra a porta. Ris-te alto, mostras os dentes tratados e revelas-te preocupado com o País sem saber onde este sequer fica. Levantas a mão para pedir a palavra no plenário e levantas-te. Acorda. Dás por ti em frente ao espelho mais sujo que já tiveste, contemplando-te numa figura patética, de braço no ar a pedir que te oiçam. Acorda, homem. Estás nos Anjos, alguém ouve fado na casa ao lado, chove, tens uma prostituta no quarto no primeiro dia do ano e ninguém vai ouvir o que tens para dizer. Bom dia, Doutor.
(texto publicado na Minguante nº 12)