Sunday, June 15, 2008

Edmilson Vs. Marquês de Sade


Acendia Edmilson o seu último cachimbo, debaixo de um freixo de frondosa copa, quando ouve um grande reboliço de vozes, risos, gritos e palmadas a subir a estrada de terra batida vindo de Norte. É quando vislumbra as figuras que aí vêm que roga pragas ao seu suposto «dom».

-Já me chegam bem os primatas vivos, pois ainda tenho que aturar os mortos?

E chega então ao pé de Edmilson, após a interrogação deste, o grupo barulhento, encabeçado pelo Marquês de Sade.

-Eu, por mim, levava também um chimpanzé para as nossas pequenas lições. - diz o Marquês, seguido de risos de toda a sua corte, constituída por três prostitutas velhas, duas novas, sem qualquer roupa interior, um soldado que aparenta uma doença de pele, um frade bonacheirão e visivelmente ansioso e um rapaz adolescente com uma coroa de flores, quase saído de um Caravaggio.
-Este chimpanzé não vai a lado nenhum, e muito menos contigo - diz, puxando uma fumaça.
-Anda lá, Edmilson. Tivesse eu a tua vitalidade, nunca parava de fazer as minhas festas. Pudesse eu transpor para o meu dia-a-dia o que imaginava nos livros, estava eu bem. Provavelmente nem escreveria nada daquilo, não havia necessidade. Belos tempos que hoje correm.
-Porquê tanto sexo, tanto deboche, no meio dessa gentalha falsamente ilustre, ó excelentíssimo Marquês?
-Não o vejas dessa forma. O desejo é sexo, mas não só. É também capricho. É sobretudo o capricho animal dentro de cada um de nós. O desejo sexual não é a vontade de ser feliz, é o impulso irracional e autodestrutivo que temos dentro de nós.
-Acho que isso não passa de uma desculpa para os teus diabólicos esquemas de raptar meninos e meninas e experimentar pô-los numa cama com putas, tal qual experiência de laboratório.
-Não, homem... macaco. Esquece a racionalidade por um momento. O que sentes? Sentes um impulso que não sabes o que é. Socialmente, pode ser positivo ou negativo, louvável ou nojento, feliz ou infeliz, mas é um impulso que te levará a algum lado, como um sonâmbulo. Imagina agora que nunca tentavas travar esse impulso. Imagina... (pausa) Já imaginaste?
-(pausa de Edmilson) Sim. É terrível.
-Sim, claro que é. Mas é isso o homem. O impulso e a imaginação humana não são fruto da racionalidade, são fruto do irracional. E o irracional é o terrível que há no homem. É o humano que há no homem.
-E como aplicar isso às tuas festas?
-O sexo, aqui, não é romântico. Isso é criado por poesia, romances e pela santíssima Trindade e ruindade da Igreja e do casamento. O sexo aqui é humano, impulsivo.
-Impulso de morte.
-Nem mais! Mas isso faz de nós os únicos humanos à face da Terra. - e o Marquês dá uma palmada violentíssima no traseiro do adolescente - Vamos embora!

E a corte do Marquês afastou-se em grupo, com este a galopar simulando o trote de um cavalo, e as prostitutas, o soldado, o frade e o rapaz imitando-o felizes. «Imbecis», pensou Edmilson e, puxando o chapéu para baixo, acomodou-se à base do seu freixo para fumar e dormir.

Edmilson Vs. Séneca


Edmilson, um chimpanzé de chapéu de coco e bengala, encontra-se num cruzamento ermo, algures em Portugal, com uma arma na mão. «É imperativo e iminente o suicídio», diz Edmilson para si mesmo. Até que, para seu espanto, apercebe-se de um vulto que se aproxima. A figura, recortada na noite contra a luz da Lua, traz consigo uma ténue aura luminosa, que indica claramente que não está bem viva. Ao aproximar-se, o vulto revela-se a Edmilson: é Séneca.

- Quem és tu?
- Sou Séneca...
- Isso bem vejo eu. Mas será possível?
- Claro que é. Se me vês é possível, se bem que a vida não me tenha voltado ao corpo. Não tem, sequer, recipiente... Pois, tal como a mente deambula sozinha durante o sonho, também a alma ganha vida própria quando o corpo desaparece.
- Não acredito em vida depois da morte. Não serás mais do que uma ilusão, suponho.
- É precisamente esse teu cepticismo existencialista que me trouxe aqui hoje. E muitos se seguirão a mim... Diz-me: porque querias ir desta para melhor se não acreditas que há algo melhor depois da vida?
- Para acabar com o desespero. O desespero tem fim da linha, sabes?
- Não, não sei. Não quero saber. Não acredito nesse tipo de visão... A morte não é definitiva, por isso deve ser uma passagem pacífica. Deve ser um momento tão pacífico quanto o resto da vida. Pois, tal como aceitamos a passagem do Inverno para a Primavera e do Verão para o Outono, devemos aceitar a passagem das estações da existência.
- A vida não é pacífica, em nenhuma altura...
- Isso é porque te falta coragem.
- É melhor ires, Séneca. Não gosto de receber conselhos de um fantasma. Ainda por cima que carrega em si a fama que se revela verdade: és feio como cornos.

E ambos partiram carrancudos. Edmilson na estrada de terra, Séneca na bruma.