Sunday, September 21, 2008

Matem-nos a todos



O louco segurava a cabeça entre as mãos, de cotovelos na secretária. Um ar assustado.
MULHER: Coma, homem. Coma. Que de estômago vazio não se vai a lado algum.
LOUCO: Ai ai ai ai ai! Não não não não não! Não queeero!
MULHER: Vá, coma lá. Leva uma garfada de comida à boca do homem. Vrrrruuumm, aí vai o aviãozinho. O louco abre a boca e come do garfo.
LOUCO: mastigando. Não quero! Nham nham nham. Antes do pequeno-almoço gosto sempre de destruir algo ou alguém. O mundo é feio. Eu não quero este mundo. Cruza os braços.
MULHER: É o que se tem. Vá...
LOUCO: Não não não! Eu é que mando nisto tudo! Mande-se queimar tudo. Não gosto do que vejo!
MULHER: Vá lá, homem... Não são assim tão maus. Ponha-se como deve ser na cadeira. E endireita o tronco do louco no assento.
LOUCO: Mande sair as tropas! Cortem as mãos aos ladrões! Estropiem os traidores! Cortem a cabeça aos usurpadores!
MULHER: Calma...
LOUCO: Eles querem-me matar, eu sei! Ontem à noite o Diabo aterrou na minha mesa de cabeceira. «Protege-te. A Primavera já foi e o Sol de Verão não dura muito», disse-me ele. Eu sei quem é, eu sei quem é que me quer morto.
MULHER: Ninguém o quer morto. Vá, tome os comprimidos. Com uma chapada na boca do homem, atira-os para a goela.
LOUCO: engasgado. Cof cof... ninguém me ama! Ninguém me ama! Matem-nos a todos, os que não me amam!
MULHER: Vá, porte-se como deve ser. Toda a gente gosta de si.
LOUCO: pondo os dedos indicadores nos ouvidos. La la la la! Não estou a ouvir! La la la la! Ninguém gosta de mim, portanto matem-nos a todos! Arranquem as línguas a quem fala mal de mim nas costas! Traidores!
Batem à porta.
MULHER: gritando. Entre!
Um rapaz de fato, com um dossier na mão, entra na sala.
RAPAZ: Sr. Primeiro-Ministro, vai discursar dentro de dois minutos.
LOUCO: sorrindo. Muito bem, obrigado. Aqui vou eu.


Imagem: Vincent van Gogh, Caveira com cigarro (1886)

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