Thursday, September 27, 2007
o suicida imortal
a imortalidade é para muitos uma benção. para outros, é uma cruz. não há nada que um suicide goste menos do que a incapacidade de morrer quando e como gosta.
zero
sempre havia pensado que era um zero à esquerda. agora, percebendo mais ou menos a minha orientação política, concedo que sou um zero à direita. nunca deixei, no entanto, de ser um zero.
Wednesday, May 09, 2007
berserk
como vingança deste mundo, o homem, em vez de arranjar uma espingarda, resolveu procurar atiradores homicidas pelo mundo inteiro. havia de apanhar uma dessas balas. só para eles verem como elas lhes mordem.
o realejo
o homem arranjou um macaco para dançar e fazer figuras tristes enquanto ele, notável hominídeo, se limitaria a tocar realejo. a sociedade começou bem, e rapidamente as moedas começaram a tilintar na pequena caixa em frente do par. «salta, edmilson, salta!» e o macaco... zumba, saltava com uma cambalhota. parecia caminhar para uma vida decente, fora da pobreza, até que o homem se apercebeu de que era o macaco a figura em destaque. era edmilson, o macaco, que recebia todos os aplausos, que ficara célebre na rua. duas semanas depois do início da parceria, o homem estrangulava edmilson, de ciúmes.
cão para a posteridade
dizem que os cães ladram e a caravana passa. mas nunca ninguém se esqueceu que os cães estavam lá.
malfeitor
começou a sua carreira de malfeitor fazendo mal aos cães. tarde se apercebeu que só nos cães teria os seus melhores amigos.
sorte
o rapaz era um rapaz sortudo. tinha toda a quantidade que quisesse da melhor coisa que há no mundo: o ar. poderia respirar todo o ar que bem entendesse. «cona da mãe! filha da puta!», abençoava o rapaz quem zelava por ele nos céus. afinal de contas, mesmo na miséria, tinha a barriguinha cheia de ar.
Wednesday, May 02, 2007
tê zero
à susana
ela estava naquele homem como se ao fim do dia fosse lá que vivesse, aninhada algures dentro dele.
coluna
andava direito na rua, pelos dias que passavam. mas sem ela por perto, cairia redondo no chão como se lhe tirassem a coluna.
ponte
cego. mole. fraco. insensível. burro. preso à sua condição natural de existir, ele precisava da mulher como de uma ponte para a vida.
Thursday, April 26, 2007
a morte é uma flor
a paul celan
a rosa que desabrochava não era um sopro de vida, mas um de morte. depois deste despertar para a vida, de olhos fechados e alma esvaziada, então sim poderíamos saborear a única coisa que existe, que pode existir: o fim. sai-se serenamente da vida, nunca em fúria. a morte não tem paixão.
dores
se de cada vez que se levantasse da cama com dores, o homem as vertesse para uma folha em branco, neste momento seria um autor consagrado no domínio do romance existencialista.
o poeta e a sua obra
o rapaz conhecia a obra do poeta através da sua extensão produção literária.
a rapariga conheceu a obra do poeta comendo-lhe o filho.
a rapariga conheceu a obra do poeta comendo-lhe o filho.
didáctica da escrita
ele escrevia para saber coisas. quanto mais escrevia mais sabia do mundo e de si. aquele esvaziamento de si mesmo, pelo acto da escrita, tinha qualquer coisa de didáctico.
um ícone
mais do que o grande romancista do século xx, ele era conhecido como o grande romance desse mesmo século.
Wednesday, April 18, 2007
Saturday, April 14, 2007
lado direito II
o que mais lhe custava na paralisia do lado direito não era a dificuldade em fazer as coisas. o que lhe custava mais era a impressão de que, no seu próprio corpo, lutavam dois homens diferentes.
lado direito I
ele brincou, afirmando que «deus está morto». deus, em resposta, paralisou-lhe o lado direito do corpo. «aqui tens um sinal de vida».
Wednesday, April 04, 2007
do juízo
diziam-no louco. o homem branco queria matar alguém, mas não sabia quem. se matasse o branco, seria um homem perigoso e psicótico, não viveria novamente entre os seus iguais. se matasse o preto, seria apenas racista. estava na dúvida. não era louco, o homem.
da bondade
vindo dos seres humanos execráveis, um acto de bondade vale uma vida inteira. vale, no mínimo, 100 boas pessoas. «não os habitues à bondade, meu caro, que um dia eles engolem-te junto».
Monday, March 26, 2007
coração
correu, correu, correu com a bola nos pés, por entre defesas e adversários. saltou mais um pé raivoso mas não foi suficiente para evitar a perseguição. antes de lhe partirem a perna em dois numa entrada por trás, apenas gritou: «amor!». podiam-lhe partir ambas as pernas, mas aquele coração não quebrava.
finalmente
o rapaz ama, finalmente ama. não fizesse ele um esforço de memória e juraria que nunca antes tinha conhecido uma mulher. antes, eram apenas pessoas do sexo oposto.
sacrifício III
pum. pum. o teu cão está morto. era doente, deficiente, o pobre do animal. aliviaste-lhe a dor de ser diferente. mas agora, inesperadamente, a dor dele foi para ti. e nessa dor não há bala que possas meter para continuar a tua vida.
sacrifício II
a mulher matou o filho dizendo que assim era melhor para a humanidade. no final, agradeceu a quem a iluminou para os prazeres do infanticídio.
sacrifício I
mata. mata. mata. parte a montra da loja. degola o cão vadio. chama nomes às putas e entretém-te a apedrejá-las. amanhã será um dia melhor e tu estarás curado. os sacrificados para a cura? não há com que preocupar, ninguém dará pela falta deles.
autocarro
no autocarro, sentia que todas as pessoas tinham sido para ali destacadas apenas para o apertar, para o esmagar. tinha sempre a sensação de que, antes do final da viagem, seria destruído. mesmo que tivesse o bilhete certo.
o melhor fato
mesmo com o melhor fato vestido, constatava a verdade: não interessava o tempo que demorava a arranjar-se ao espelho, porque no amor, no final de tudo, seria sempre um trongo.
Sunday, March 18, 2007
tentação III
queria matar alguém. mas mesmo num mundo sem lei, até matar um desconhecido lhe soava a fratricídio. não é preciso deus para perceber que somos todos filhos de um mesmo pai longínquo.
tentação II
o homem renegou deus e entregou-se às mãos do diabo. de forma resumida, pode-se dizer apenas que desistiu da lei.
interdição
o rapaz mal podia esperar que lhe tocassem no pénis. como um ponto no meio das costas onde as mãos não chegam, o rapaz sentia que era fisicamente impossível satisfazer-se a si mesmo.
velocidade
corri com alma e coração na direcção do vazio. o cimo do prédio estava ventoso nesse dia, e a corrida dava a sensação de velocidade. na corrida para a beira desprotegida do terraço, passou-me pela cabeça rapidamente a sensação de omnipotência. posso voar, pensei eu. não sabia voar. não voei. mas num pico de velocidade nunca se pensa na morte.
Friday, February 23, 2007
Saturday, February 17, 2007
literatura
o rapaz, determinado dia, teve uma ideia: o papel e a caneta preencherão o lugar deixado vago pela rapariga. nos intervalos do amor, a dor. a isso gostava ele de chamar «literatura».
Thursday, February 15, 2007
são valentim
se amanhã não acordares, meu amor, então que seja minha a faca espetada no teu peito. e cravou-lhe a faca do pão na zona do fígado, pensando que lhe penetrava o coração. desfez-se o fígado debaixo do peso do seu corpo, mas pensara que apenas lhe enchia o coração de um amor violento. amanhã é um novo dia, meu amor, estaremos juntos para sempre. e o sangue a tingir os lençóis. amor, amor, porque gostas tanto de mim? as entranhas desfeitas. um coração intacto mas sem bater. a faca não penetrou no coração, mas penetrou na rapariga em pleno sonho. o assassino não entrava nesse sonho.
O chão
As moedas ao caírem no chão fazem barulho. Pequenas e grandes. Fortes e menos fortes. Não são invisíveis. Só as coisas que não fazem falta caem no chão sem fazer ruído. Veja-se o lenço sujo arremessado ao ar ou a bola de cuspo. Já a moeda chama o homem. O amor também, quando cai, faz barulho, pede que o homem se ajoelhe, chamando pelo seu nome, para que não lhe doa o estômago.
Peão da torre da rainha
O homem esfrega-lhe a cona em pleno bar. Rejubila, a rapariga. Joga o peão da torre da rainha, diz ela, é mais forte. Perderá, a rapariga, se confiar na força. Joga a pedra, grita ela. Esfrega-me a cona. Ele esfrega-lhe a cona. Joga a pedra, o homem. Vai perder. A rapariga sabe bem que o peão vai com a torre, vai com a pedra, mas não deixa de ser um peão.
frança
frança é um curto espaço de terra entre a alemanha e o mar onde os homens são mais mulheres, diz a mãe à filha no café.
a frança é uma mentira?, pergunta a criança.
o velho na mesa ao lado assoa-se para o lenço e sai sangue.
não é, minha querida.
mãe, a frança existe?
sim, é um espaço grande de terra.
o velho tosse e cospe sangue.
mãe, é verdade que em frança há homens mais sábios que nos outros sítios?
frança é uma terra muito bonita, filha.
o velho começa a ficar arroxeado, sem respirar. a respiração é o mote da vida. não há nada mais metafísico do que depender de um movimento do esterno para poder pensar.
a criança começa a gritar: frança é uma mentira, frança é uma mentira.
o velho cai morto chão, numa poça de sangue, a face de cor roxa. a frança é uma mentira, foram as últimas palavras que gravou em vida.
a frança é uma mentira?, pergunta a criança.
o velho na mesa ao lado assoa-se para o lenço e sai sangue.
não é, minha querida.
mãe, a frança existe?
sim, é um espaço grande de terra.
o velho tosse e cospe sangue.
mãe, é verdade que em frança há homens mais sábios que nos outros sítios?
frança é uma terra muito bonita, filha.
o velho começa a ficar arroxeado, sem respirar. a respiração é o mote da vida. não há nada mais metafísico do que depender de um movimento do esterno para poder pensar.
a criança começa a gritar: frança é uma mentira, frança é uma mentira.
o velho cai morto chão, numa poça de sangue, a face de cor roxa. a frança é uma mentira, foram as últimas palavras que gravou em vida.
Tuesday, February 06, 2007
amor IV
por muito
que o homem quisesse escrever as
suas próprias
páginas,
o livro folheava-se a um ritmo próprio.
por vezes as palavras ficavam tortas
e ilegíveis,
mas a página não voltava atrás.
que o homem quisesse escrever as
suas próprias
páginas,
o livro folheava-se a um ritmo próprio.
por vezes as palavras ficavam tortas
e ilegíveis,
mas a página não voltava atrás.
amor III
o amor tem pernas,
foge de ti,
corre em teu redor
chamando-te nomes.
e tu sem saber o que fazer
sem saber como morrer
e como lhe dizer
que antes dele já vinhas
tu e o teu monólogo indecifrável.
foge de ti,
corre em teu redor
chamando-te nomes.
e tu sem saber o que fazer
sem saber como morrer
e como lhe dizer
que antes dele já vinhas
tu e o teu monólogo indecifrável.
amor II
chegando à hora do deitar, o rapaz recusou-se a ir para a cama, como se a noite sem ela fosse uma estrada sem fim.
amor I
um homem condena-se a si mesmo a gostar de uma mulher como se entre o hoje e o amanhã estivesse um beijo prolongado.
vita nuova
um homem mudou de casa, de emprego e de cidade. com isto queria convencer-se a si mesmo que tinha mudado de vida, que a anterior nunca tinha sido a sua. queria convencer-se de que a vida melhorava como se esta não fosse uma continuação daquela.
Saturday, February 03, 2007
ad aeternum
ele escrevia o seu nome na água pensando que era para sempre.
um erro.
mas desta vez mergulhou de cabeça.
um erro.
mas desta vez mergulhou de cabeça.
segundo tiro
o escritor matou-se com dois tiros na testa, dizem. fica a pergunta: como teve tempo para o segundo tiro?
Friday, February 02, 2007
oráculo
desde novo aprendi que
a vida não quer saber o rumo.
mas se queres saber o teu,
basta atirar uma navalha aberta ao ar
e preparar um pontapé
para que o oráculo te
revele que vida é a tua:
predestinação ou triste sina.
a vida não quer saber o rumo.
mas se queres saber o teu,
basta atirar uma navalha aberta ao ar
e preparar um pontapé
para que o oráculo te
revele que vida é a tua:
predestinação ou triste sina.
ponto de fuga
antes do casamento, ela arranjou um amante fixo, como quem quisesse cobrir a retirada.
coragem
é mais difícil a coragem na solidão. tomemos este exemplo: uma criança com medo do escuro nunca entrará pelo seu próprio pé numa sala sem luz, mas duas crianças juntas com medo do escuro já serão capazes de arriscar entrar nessa sala, para descobrir o que está nas trevas.
como disse, é difícil a coragem na solidão. um homem sozinho cometendo actos destemidos - a isso se chama desespero.
como disse, é difícil a coragem na solidão. um homem sozinho cometendo actos destemidos - a isso se chama desespero.
religião
deus envia o homem, com o livre arbítrio, à terra sabendo que este vai escolher mal. a religião não se torna mais cruel do que isto.
flor de poesia
é a vida mais do que isto
que vemos?
não creio.
«agarra-te à vida, joão, agarra-te ao que tens.
agarra-te à s., flor de poesia»,
ouço um eco no quarto dizer-me.
que vemos?
não creio.
«agarra-te à vida, joão, agarra-te ao que tens.
agarra-te à s., flor de poesia»,
ouço um eco no quarto dizer-me.
Thursday, January 25, 2007
Wednesday, January 24, 2007
cruz
jesus cristo perdoou aos canalhas, mas ele não conseguia. da sua cruz deste século apenas se preparava para uma pregação de ódio. não era uma cruz pesada, mas dava-lhe a dor suficiente para odiar.
tudo dito
está tudo dito, gritara a rapariga, em pranto. e calava-se, calava-se, calava-se. não conseguia parar de se calar, perante o falatório incómodo do seu homem.
estranha forma de vida
ninguém gosta de ser cruel, disse ela, toda a gente gosta de ser piedosa. e depois calou-se, impiedosa. não falo mais, foi tudo o que repetiu, para todo o sempre.
construções literárias
o amor, a poesia e mil e uma formas diferentes de dar a volta ao mundo conhecido sem colocar o pé em terra.
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